Estilo de Vida Free Jazz Segundo Peter Brötzmann

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Por Arthur Dantas . Tradução das falas de Brotzmann por Luciano Valério

(publicado originalmente na +SOMA 7. Aqui, com alterações significativas)

“Eu não tenho muitas expectativas, na verdade – só espero que as pessoas venham. Nós vamos fazer o que sempre temos feito: dar o melhor de nós mesmos e ver como o público reage, se irão gostar ou não.” Essa declaração de Peter Brötzmann, um dos maiores músicos de free jazz em atividade no planeta, sobre sua apresentação recente no SESC Vila Mariana, em São Paulo, reflete muito de sua postura em relação à música: toca apenas o que lhe interessa no momento, sem preocupação com convenções ou regras específicas. Brötzmann, que tem mais de cem discos gravados em 40 anos de carreira, veio acompanhado dos músicos Marino Pliakas (baixo) e Michael Wertmüller (bateria), divulgando o violentíssimo álbum Full Blast.

A apresentação do trio em São Paulo é inspiradora – para usar um adjetivo que não dá a conta do que foi apresentado. Não à toa, o grupo foi eleito a melhor performance ao vivo de 2007 pelo site All About Jazz. De imediato, o público fica atônito, pasmado. Uns fogem, outros, extasiados. A eletricidade corre pelo teatro quase lotado. Almas de pouca fé saem, evitando o terror sônico vindo do palco. Como se pudéssemos nos safar da violência que nos espera do lado de fora do teatro. Toda alma é fustigada pela improvisação virulenta de Brotzmann. Seja no saxofone, no clarinete ou no tarogato, o ataque é o mesmo. O que quer aquele senhor grisalho no palco, empunhando seus instrumentos como se pudesse responder ao mundo por meio de notas musicais acintosas e frenéticas? Era algo que me vinha à cabeça. O baixo, tão distorcido ressoava permanentemente pelo espaço, preparando o terreno onde se instalaria o caos. A bateria complementava – se é que isso seja possível – o frenesi do experiente músico alemão. Passa-se quase uma hora. Cessa o som. Meu mundo ruiu e repentinamente volta ao lugar. As pessoas se levantam, aplaudem muito e vão embora. Essa movimentação me parece um tanto vulgar após uma sessão de depuração via free jazz violento e expressionista. Fico com a impressão que o artista se nutre intensamente da tensão moderna e nos devolve esse sentimento em forma de cascatas sonoras, alcançando um tipo de catarse muito peculiar. É quase como uma resposta ao mundo, um diálogo tenso, intenso, cuja intervenção é: recebam à agressão e violência cotidiana de volta. Expurgo e depuração.

O músico alemão começou na música como clarinetista, mas logo passou para o saxofone – instrumento que o consagrou mundialmente –, influenciado por músicos europeus vanguardistas como John Cage e Karlheinz Stockhausen. Inicialmente, ligou-se ao baixista Peter Kowald, e logo tocaria com o lendário jazzista estadunidense Don Cherry. Músicos fundamentais da música contemporânea de invenção, como Han Bennink, Evan Parker e Keiji Haino, são alguns de seus parceiros mais constantes. Ainda que seu trabalho encontre variações e fases bem definidas e distintas, há uma característica muito evidente em sua estética: a improvisação intensa e animada, marcada por barulhentos e intempestivos solos de saxofone, expandindo o free jazz mais radical dos Estados Unidos, de artistas como Albert Ayler, Ornette Coleman e John Coltrane (em sua última fase). Esse estilo próprio acabou por caracterizar toda uma cena européia iniciada nos anos 1960, que deitou raízes e se espalhou pelo mundo. Para leigos, uma comparação igualmente leiga: pense nas paredes de ruído e vanguardismo de um Sonic Youth de seus melhores trabalhos e na violência sonora de um Napalm Death. Pois é, Peter Brötzmann e seus companheiros europeus fazem com que tais bandas soem ingênuas, amadoras.

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Vale abrir parênteses para falar de sua aptidão artística inicial: as artes plásticas. Assim como outros artistas do free jazz e da música livre, Peter Brötzmann começou na pintura e estendeu suas atividades para a criação de objetos. Só que encontrava-se no meio de um furacão artístico chamado Fluxus, uma das vanguardas artísticas mais importantes da segunda metade do século XX. No início dos anos 1960, Brötzmann era um jovem assistente em uma oficina de artes plásticas em Wuppertal, na Alemanha. Inicialmente, a Alemanha foi um dos pólos divulgadores do Fluxus – que, mais que um movimento, era “um modo de fazer coisas (…), uma forma de viver e morrer”, nas palavras de Dick Higgins, um dos entusiastas desta vanguarda. Óbvio que isso atraiu o saxofonista, que encara a arte como uma atitude diante do mundo.

“Eu tive grande prazer e honra em trabalhar com Nam June Paik [um dos principais artistas Fluxus]. Ele fazia sua primeira grande exposição na Europa Oriental, justamente na cidade em que eu vivia. Eu trabalhava em uma grande galeria de vanguarda que havia por lá, então estava sempre preparando as coisas, consertando pianos – todas as noites o público tocava, quebrando as teclas do piano, e no dia seguinte eu tinha que consertá-las. Assim conheci integrantes do Fluxus, como George Maciunas, que vivia na Alemanha naquela época. Era um bom lugar para a vanguarda. Acabei vendo várias performances, shows e exibições. Para além da música, foi uma outra maneira de abrir os ouvidos e o os olhos para outras coisas. Depois, acabei encontrando Don Cherry, Steve Lacy e Nam June Paik.” Pergunto se ele ainda tem interesse por pintura, já que quase todas as artes de seus álbuns são de sua lavra. “Sim, e naquela época a pintura era algo que eu realmente gostava de fazer – a música vinha em segundo plano. No meio da década de sessenta a coisa mudou de figura, e aí a pintura acabou ficando em segundo plano. Hoje eu tento equilibrar as coisas, colocar 50% de cada lado.”

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Mas houve ainda outro fator para que Brötzmann escolhesse a música: a paixão por se relacionar com artistas inventivos e igualmente livres, como Carla Bley, Steve Lacy e Cecil Taylor – que no ano passado fez uma comentada apresentação no Tim Festival no Brasil. “Gosto muito de estar na estrada, gosto de trabalhar com essas pessoas. Acho que tocar o que chamam de jazz tem um lado social, que é criar algo junto a outras pessoas. O grupo que montei em Chicago é como um evento social, em que eu divido boa parte da minha vida com essas pessoas para criar algo junto com elas. É uma sensação incrível. É legal trabalhar em estúdio, mas estar com outras pessoas e viajar é realmente o mais importante para mim.” Este trabalho de Brötzmann em Chicago, que chega a reunir de 5 a 12 músicos, é uma das iniciativas mais celebradas dentro da cena de free jazz mundial dos últimos tempos. Ele conta como tudo aconteceu: “Um dia eu estava conversando com o John Corbett (um dos maiores entusiastas e crítico de música contemporânea mais radical e vanguardista) em Chicago, e começamos a falar sobre os outros músicos que também estavam na cidade. Chamamos essas pessoas e logo começamos a fazer vários shows pela a cidade. Já se passou uma década desde então, e espero que isso dure até quando nós agüentarmos (risos)”.

Da mesma forma que artistas vanguardistas como os estadunidenses John Zorn e Ken Vandermark, o holandês Han Bennink e o sueco Mats Gustafsson, o músico alemão criou vínculos com certa fatia da música pop – se é que podemos usar a palavra “pop” para tratar de grupos como Sonic Youth, The Ex ou Napalm Death. Seu filho Caspar Brötzmann, inclusive, foi um dos pioneiros na mistura entre thrash metal e free jazz. “Eu não tenho muito que falar a respeito… Veja só este trio [se referindo aos músicos que o acompanharam no Brasil]. Cada um de nós é de uma geração diferente, e temos passados diferentes. Claro que bandas como o [grupo holandês] The Ex são legais. Quando comecei a perder um certo sentido de busca em minha música, passei a tocar com um monte de músicos de rock, e nunca houve uma discussão sobre o que fazer, era somente ir e tocar. Estou aberto a tocar qualquer coisa, mas também estou aberto a dizer ‘dane-se, eu não gostei disso’.” O músico explica sobre sua concepção de jazz: “O jazz não são os 12 compassos do blues, não são os 32 compassos do jazz tradicional: jazz é um sentimento bem forte e uma maneira de viver. E está ligado às ruas. Você viaja e aprende coisas, porque passa por diferentes estados mentais a cada noite, tem plateias diferentes. Os jovens não aprendem mais isso hoje em dia. A música nunca vai morrer, porque é centrada no ser humano, e é a maior forma de comunicação internacional. Você não precisa saber idiomas – só precisa tocar.”

Pelo menos dois álbuns gravados por Peter Brötzmann são tidos como marcos na música moderna: Machine Gun, de 1968 e Nipples, no ano seguinte, ambos ao lado do plural e dinâmico baterista Han Bennink. Nenhum desses dois trabalhos vendeu milhares de cópias, mas, o estranhamento inicial hoje se tornou objeto de culto: Nipples, em sua primeira reedição em CD nos Estados Unidos, vendeu 3 mil cópias em poucas semanas. Machine Gun tem exatos 40 anos, assim como um acontecimento político-cultural que marcaria nossa época: as revoltas estudantis parisienses em 1968, que inspiraram outros movimentos similares ao redor do planeta. Muito se comenta sobre como a estética improvisada e livre deste disco antecipava esteticamente os ideias de igualdade, autonomia e livre associação dos jovens de Maio. Um crítico português acredita que esse álbum “é um dos mais potentes manifestos [sobre o Maio de 68] que ainda hoje se podem escutar sob a forma de disco. Uma efetiva declaração de guerrilha urbana”. Reduzir a música de Brötzmann e outros jazzistas europeus de então à esfera política parece banal, mas as conexões são evidentes – quando não explícitas, como no álbum Machine Gun – e deitaram raízes profundas, que se estendem até os dias de hoje.

“[Maio de 68] é uma grande história, precisaríamos de muitas noites para falar a respeito. Claro que na Europa e na América foi uma época difícil, e especialmente nós, alemães, tínhamos uma idéia forte de como seria uma sociedade, de como a vida deveria ser, bem diferente de como o governo da época achava que deveria ser. É uma coisa que aprendi depois de ver as fotos de Auschwitz e os filmes sobre os campos de concentração. Vi filmes sobre isso na escola, com 14 ou 15 anos, e foi aí que tive a certeza de que isso não poderia se repetir. Existia um sentimento meio ingênuo na década de 60, achávamos que poderíamos mudar o mundo para melhor. Era uma ideia muito fútil, e aprendi rapidamente que esse tipo de pensamento não estava certo. Hoje em dia se vê a mesma coisa acontecendo no Iraque, na África etc. E ainda não é uma boa hora para se sentar em uma cadeira confortável e relaxar ouvindo boa música. O mundo se afunda em guerras, e isso é algo sobre o qual não podemos fazer muito, mas ao menos podemos ser bem livres e tirar algo dessa situação e dizer algo em nossa música. Eu ainda acredito que não é hora de desistir e sentar diante disso tudo achando que está tudo bem, quando na verdade nada está bem.” Mais uma vez, um músico pensando sua arte como uma resposta política ao mundo.

Saiba Mais:

http://www.shef.ac.uk/misc/rec/ps/efi/mbrotzm.html

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